Cabreuva

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Desliguei o telefone com ele e disse para o meu chefe "desculpe, não posso mais". Teria dito isso a ele se não tivéssemos desligado logo. Foi bom. Por outro lado, meu chefe pareceu não entender:
- O que aconteceu? - ele disse, um pouco preocupado.
- Estou com uns problemas.
- Você precisa de alguma coisa?
- De um dia de folga.
- Você não quer dizer o que está havendo?
- Não, hoje não.
Arrumei minhas coisas rapidamente, envergonhada por estar saindo assim, sem que ninguém pudesse dar uma boa explicação para aquilo. E nem eu.
Já passara por louca outras vezes em outros trabalhos, já saí por passar mal, por estar aos prantos, mas por não estar nada além de desesperada, nunca.
Joguei todas as coisas no porta-malas do carro e olhei a esteira de praia que estava lá. Eu havia deixado a esteira no porta-malas com o pensamento "caso qualquer coisa" e achei que aquele momento era a própria definição de "qualquer coisa" acontecendo.
Meu chefe estava na janela, insistiu em oferecer ajuda com o que quer que fosse. Eu sorri um sorriso amarelo e agradeci. Entrei no carro e fui.
Não sabia bem ao certo para onde iria, mas estava aliviada de não TER que ir a lugar algum. Aproveitei para desligar meu celular de modo que todas as linhas de pensamento que surgissem pudessem ser completadas sem interrompimentos.
Peguei a marginal, dirigi em silêncio por cerca de 20 minutos depois me lembrei do rádio. Liguei-o. Um música feliz e contente tocava. Desliguei-o. Achei o barulho já era alto demais dentro da minha cabeça.
Comecei a ler as placas. Decidi, pararia em qualquer cidade na qual eu nunca pensaria em parar em qualquer outro momento da minha vida.
Segui as direções até Cabreúva, cidade que, fiquei sabendo depois em busca ao wikipedia, não tem mais de 45 mil habitantes.
Dirigi um pouco pela cidade e parei na praça principal, onde uma igrejinha muito simpática me convidava para sentar-me em sua escadaria. Não havia mendigos, pedintes, vendedores ambulantes... Só aquelas pessoas de cidade do interior com a sua calma inabalável. Tudo que eu procurava.
Peguei a esteira no porta-malas e pousei-a no degrau mais alto da escada ao lado de um pequeno poste de luz. Senti muito por não ter um livro para ler, mas decidi que tinha mesmo é que pensar nas coisas na minha vida e não em outras histórias fantásticas.
Vigiei e fui vigiada por alguns cabreuvanos que provavelmente nunca tinham visto alguém chegar assim no meio da tarde do meio da semana. Depois de um tempo, foi como se eu fizesse parte da decoração da igreja.
Pensei no meu chefe, o que será que estaria acontecendo na empresa naquele momento? Será que ele precisava de mim? Será que eu já havia perdido o cargo? Percebi que não haveria evolução nenhuma em me preocupar com isso, já que não existia nada, de fato, que pudesse ser feito naquele momento em Cabreúva para mudar as coisas.
Comecei a pensar em mim e nele, nas coisas que ele me falou. Ele estava passando por uma crise existencial, eu também, e o costume de não nos entendermos é que nos fazia ficar ainda mais em crise ainda.
Respirei fundo. O cheiro de Cabreuva era algo como pipoca com terra. Deitei-me na esteira.
Agora tinha certeza que os passantes olhavam-me e comentavam, mas resolvi que não iria me incomodar com isso.
A visão do céu, que tinha algumas nuvens brancas, com a cruz no topo da igreja fez com que eu sentisse uma paz momentânea. Depois perguntei, como se para alguém com que eu pudesse conversar naquele momento "que faço?".
Meu coração deu uma batida mais forte, tive medo de estar tendo um troço em plena Cabreuva, mas depois vi que talvez fosse apenas um rompante de apreensão.
Eu não deveria estar ali, eu não deveria estar me perguntando o que fazer, eu não deveria nunca ter abandonado meu trabalho daquele jeito, não devia ter ligado para ele naquela tarde, não deveria, não deveria.
Agora já era tarde demais, pensei, eu não sabia o que diria para meu chefe e nem para ele quando voltasse. Eu não sabia mais o que era certo fazer, depois de ter feito o que estava feito.
Neste momento, um homem cobriu minha visão da cruz de igreja com a cabeça.
- Ô, moça, a senhora está bem?
- Não.
- Tá sentindo mal? Zonzeira?
- Não.
- Tá sentindo o que? Quer que eu ajuda a senhora a ir até o PS?
- Não, tô sentindo mal do sentimento.
Ele ficou lá parado, olhando-me como se eu o houvesse xingado, quieto. Depois sentou do meu lado na esteira, eu sentei novamente e permaneci quieta, olhando-o. Havia satisfação em um cabreuvano ter se importado comigo.
- Olha, moça, eu tava noivo da moça mais bonita dessa cidade, na minha humilde opinião, ela trabalhava no salão ali do outro lado, um dia ela chegou em mim e disse que ia pra São Paulo, eu disse que não queria ir, eu tenho meus trabalhos aqui, minha mãe, ela só disse que sabia que eu ia dizer isso e foi...
Interrompi a história um pouco confusa.
- Como você sabe que meu mal tem a ver com amor? - perguntei incrédula.
Ele me ignorou.
- Fiquei uns quinze dias chorando, dia e noite, pensando que devia ter ido pra São Paulo com ela, que devia ter largado minhas coisas e feito tudo pelo meu amor, devia ter conversado melhor, sabe? Depois desses quinze dias, um colega meu me chamou de canto e me falou o seguinte "oia, eu sei que você tá sofrendo por causa dela, mas se ela for tua, ela volta aqui e diz que dá jeito de você ficar la com ela, ou chega aqui e conversa um jeito de ficar aqui mesmo, sabe? quando a pessoa nao é sua, nao tem como, meu amigo, o que um não que dois não faz". E daí eu pensei que ele tava mesmo certo, sabe. Que dói a gente não poder agradar a pessoa que tá com a gente, mas a vida tá aí, tem como fazer de tudo se a pessoa quer mesmo, se não quer não faz. E daí eu voltei a trabalhar, ainda sentia tristeza, mas tava pensando que era aquilo que era pra eu viver, coisa do meu destino, pra eu contar na minha história, sabe?
De repente, eu soube. Olhei-me naquele lugar, sentando com aquele cabreuvano desconhecido que, do nada, resolveu contar-me da sua vida e o desespero passou num instante e voltou no outro.
Levantei num supetão.
- Olha, moço, eu entendi. Muito obrigada pela ajuda.
- Não a de que. Se a senhora quiser tomar um café, a gente pode sentar no Cheiro de Mato ali.
- Não posso, eu preciso mesmo ir.
- A senhora vai pra onde agora?
- Pra São Paulo.
A expressão dele ficou um pouco soturna, depois relaxou. Ele deu um sorriso amarelo e abaixou o olhar.
Toquei-o no ombro.
- Obrigada mesmo.
Ele só balançou a cabeça.
Joguei a esteira no porta-malas de novo e dirigi em alta velocidade de volta. Precisava dizer para ele que a gente ia fazer qualquer coisa se ele quisesse e se ele não quisesse fazer nada mais, era o que a gente tinha que viver.
Chegando de novo na entrada da marginal, peguei meu celular, eu ligar, eu ia dizer.
Tentei ligá-lo, mas não funcionava. Tirei a bateria, recoloquei, bati, abri, fechei, não ligava.
Quase arrancando os cabelos de nervoso, com a solução da minha vida na ponta da língua e eu não poderia dizer. O que eu faria, o que eu faria.
Olhei o trânsito da marginal e disse:
- Calma!
De repente, deu-me um estalo. Calma, de fato, era só isso que eu poderia fazer, ter calma, com tudo, com a história toda.
Dei um risinho, debochando de mim mesma. Eu fui até Cabreuva, ouvir as desilusões de um cabreuvano qualquer, para entender o que eu devia fazer no trânsito da Marginal?
Estava indo muito longe... Eu sempre ia muito longe...

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